MPT processa empresário por tráfico de pessoas e trabalho escravo

O empresário mantinha um esquema estruturado que prometia trabalho a mulheres como modelos em eventos, mas visava a exploração sexual de vulneráveis, crianças e adolescentes mediante a prática de crimes de tráfico de pessoas e redução de mulheres à condição análoga à escravidão.

São Paulo, 19/10/2022 - Na terça -feira (18/10), o Ministério Público do Trabalho em São Paulo, por meio de atuação de um grupo de procuradores do Trabalho, ajuizou uma ação civil pública (ACP)contra o empresário Saul Klein, filho do fundador das Casas Bahia, após investigação apontar a prática de tráfico de pessoas para a submissão a condições análogas às de escravo, com trabalhos de natureza sexual.

A investigação teve início em 2020, após o recebimento de denúncias de estupro, tráfico de pessoas e favorecimento à prostituição praticado pelo réu, que mantinha uma organização criminosa bem estruturada que arregimentava e prometia trabalho como modelo a jovens e mulheres em vulnerabilidade.

O aliciamento ocorria com a cooptação de jovens na faixa dos 18 anos e adolescentes com 16 ou 17 anos, em situação de vulnerabilidade econômica e social, que eram convidadas a participar de eventos como modelo para fazer “presença vip”, tirar fotos para campanhas de biquíni ou panfletagem e em seguida eram inseridas no esquema criminoso que visava à exploração sexual. Diversas mulheres vieram de outros estados e de outras cidades do estado de São Paulo, evidenciando-se o tráfico de pessoas.

Após o aliciamento, muitas eram seduzidas e persuadidas a participar de eventos no sítio do réu em Boituva (SP), ocasião em que passavam o final de semana e recebiam pagamento pelos serviços sexuais, que caso se negassem a realizar, eram punidas. “Algumas vítimas relatam que ficavam mais de 24h trancadas num quarto com o réu, e eram dominadas sexualmente a qualquer hora do dia, mesmo enquanto dormiam, sem qualquer chance de resistência física ou moral”, explica o procurador do Trabalho Gustavo Accioly, que assina a ACP juntamente com as procuradoras Tatiana Leal Bivar Simonetti e Christiane Vieira Nogueira. Ele ressalta: “ o que se combate aqui não é prostituição em si, já que se ela fosse exercida de forma livre, consentida e voluntária, não haveria ofensa à ordem jurídica. Combate-se o ato de se tirar proveito econômico indevido de pessoas forçadas física ou moralmente, mediante abuso, fraude ou engodo, a praticarem atos sexuais sob forte subjugação”. Sob o viés da exploração laboral, o caso em questão se traduz em trabalho sexual involuntário, um ato complexo para tirar vantagem injusta do trabalho de uma pessoa.

A investigação concluiu também que depois de inseridas no sítio, as vítimas eram mantidas durante dias/semanas sem liberdade de locomoção, pois não podiam sair, ficavam sem qualquer contato com o mundo externo. O local era vigiado por seguranças armados 24 horas por dia. A casa era cercada com muros altos e havia pessoas da confiança de Klein organizando todas as atividades. Caso alguém pedisse para ir embora, era imediatamente negado. Segundo Accioly, “não restam dúvidas de que estamos diante de um grave caso de tráfico de pessoas para fins de trabalho sexual em condições análogos a de escravo”.
Na peça ajuizada, os procuradores consideram que os corpos das vítimas foram tratados como mercadoria ou moeda de troca para proveito dos exploradores, violando gravemente direitos humanos das vítimas, especialmente a liberdade, inclusive a sexual, e a dignidade.

“A Constituição de 1988 tem ojeriza pela cultura do estupro e exalta a dignidade sexual da mulher. É importante deixar claro que a cultura do estupro é considerada um importante pilar da dominação masculina, vinculado a construções de gênero e sexualidade no contexto de sistemas mais amplos de poder masculino e destacam o dano que o estupro faz às mulheres enquanto grupo”, argumenta Accioly.

Cultura do estupro

O Brasil mostra números alarmantes de violência de gênero em diversas formas, incluindo os estupros. Em 2019, foram registrados 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável nas delegacias de polícia do país – uma média de um estupro a cada 8 minutos. Os dados do 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que as mulheres continuam sendo as principais vítimas do crime, com 56.667 dos registros, (85,7%), o que equivale a um crime sexual a cada 10 minutos.

Cerca de 100 crianças e adolescentes de até 14 anos são estupradas por dia no Brasil, segundo levantamento inédito feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a Unicef. De 2017 a 2020, 81% das vítimas de estupro tem até 14 anos, um total de 145 mil casos ou 36 mil por ano. Durante o período, foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de zero a 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública alerta para a imensa subnotificação que cerca o fenômeno da violência sexual no país, fruto do medo, sentimento de culpa e vergonha com que convivem as vítimas, e até mesmo o desestímulo por parte das autoridades, o que acontece com as vítimas do caso em tela que diante da vulnerabilidade ante o poderio econômico do reclamado e pelo receio de estigma de mulher que já for estuprada, temiam a procura dos entes públicos.

MPT pede condenação e 80 milhões por danos morais coletivos

Na ação ajuizada, considerando o patrimônio do réu e seu poder econômico, o MPT pleiteou o valor da indenização a título de dano moral coletivo de R$ 80 milhões, pela gravidade de sua conduta. “O desprezo do réu pela dignidade das mulheres, sua autonomia, liberdade e saúde sexual viola o pacto social e normativo de respeito à condição humana. Necessário uma medida contundente de contenção e reparação por todas as práticas repugnantes aqui narradas, sob pena de o Poder Judiciário ser conivente com uma sociedade de mulheres abjetas, negociáveis e mercantilizadas”.
O órgão pede também que a justiça do Trabalho condene Klein a se abster de traficar pessoas, bem como agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, utilizando-se de formas de coerção com o propósito de explorá-las sexualmente ou em condições de trabalho análoga a escravo, de submeter crianças e adolescentes à exploração sexual comercial, de violar a autodeterminação, liberdade e dignidade sexual de pessoas entre outras obrigações. Para cada obrigação descumprida, o MPT pede o pagamento de multa em valor não inferior a R$ 200 mil, por infração e por trabalhador encontrado em situação irregular.

Os valores serão reversíveis ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) ou a outra destinação socialmente relevante equivalente que observe a finalidade de recomposição dos bens lesados, a ser oportunamente indicada pelo Ministério Público do Trabalho e chancelada pelo Juízo.

[[ Com informações da Ascom do MPT-SP ]]

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