“Se não podemos entrar nas residências, vamos entrar nas consciências”, comenta procurador
“Se não podemos entrar nas residências, vamos entrar nas consciências”. Com esta declaração, o procurador do trabalho, Antonio Lima, falou no seminário “Trabalho Infantil Doméstico no Ceará: estratégias do poder público e da sociedade civil para prevenção e erradicação”. O evento reuniu cerca de 200 pessoas de todo o Estado no auditório do Tribunal de Contas do Município (TCM), nesta sexta-feira (7/6).
Para o procurador, o Brasil deu um grande passo para combater o trabalho infantil doméstico, com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que regulamentou o trabalho das empregadas domésticas. “As ações aconteceram no mundo legal, no mundo real ainda tem muita coisa para avançar”, comentou Antonio Lima. O trabalho infantil doméstico foi incluído como uma das piores formas de trabalho infantil, mas mesmo assim houve uma proposta de regulamentação do trabalho das domésticas que permitia a contratação de menores de 18 anos. Proposta que foi rejeitada por uma das comissões do Senado Federal. “Por isso é que temos de ficar vigilantes todo o tempo”, avisou o procurador.
Para a promotora de infância e juventude do Ceará, Antônia Lima, o tema deste ano é extremamente necessário e desafiante. Levantamento feito pelo MPT aponta a Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) como a que possui a maior quantidade de crianças no trabalho infantil doméstico. O levantamento leva em consideração os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada em 2011 e divulgada no final de setembro de 2012.
Segundo a Pnad, 6.050 crianças e adolescentes de 10 a 17 anos estão trabalhando em domicílios na RMF, o que, em números absolutos, coloca a região como a que mais possui trabalhadores infantis nesta condição. Esse número representa 14,73% do total de crianças que trabalham nessa faixa etária (41.079) na região metropolitana. Esse percentual é segundo maior entre as regiões metropolitanas, ficando abaixo apenas da região metropolitana de Belém, onde o trabalho infantil doméstico correspondente a 16,28% do trabalho infantil em geral. “Divulguem bastante o disque 100, o desafio é de todos nós”, convocou Antônia Lima.
“Eu quero voar”
Um dos momentos mais emocionantes do seminário foi o depoimento da cozinheira Cláudia Sousa. “O trabalho infantil trouxe traumas que carrego comigo até hoje”, contou com lágrimas nos olhos. “O mastro da bandeira contra o trabalho das crianças deve estar erguido nas nossas almas. Denunciem, não aceitem”, disse. Tudo isso porque quando criança, Cláudia teve de trabalhar para que os irmão não passassem fome. “Era criança cuidando de criança”, declarou.
A cozinheira lembrou que as atividades desenvolvidas durante sua infância chegavam a durar um dia inteiro e muitas vezes eram remuneradas, apenas, com comida, roupas e mantimentos em geral. Quase nunca em dinheiro.
Emocionada, Claudia Souza conta que chegou a limpar um galinheiro em trocas de ‘miúdos’ de frango. “Quando terminei de limpar o galinheiro o dono do lugar me deu só as tripas do frango e eu saí de lá com a cabeça cheia de penas, toda suja. Esperava algo mais para saciar a minha fome e a de meus irmãos”. Mesmo com as com as tripas, a cozinheira ficou contente por poder fazer uma refeição para os irmãos.
O passado de miséria e exploração trouxe marcas para o presente da cozinheira de 44 anos. Ela explica que os trabalhos durante a infância traziam uma carga muito pesada sobre ela. Quando olhava para as outras crianças e não enxergava a mesma realidade, ela fica imaginando que poderia ter um mundo melhor. “Até hoje, aos 44 anos, eu tenho uma total insegurança em relação ao futuro e o que me traz segurança é uma estabilidade baseada em mim mesma. Isso me trouxe muitos transtornos com os quais eu convivo até hoje”, reflete.
Um fato que marcou muito essa fase na vida de Cláudia Souza aconteceu quando ela tinha oito anos trabalhava como babá. Ela tinha de limpara a casa, fazer a comida, dar o mingau e o banho da criança. Certa vez, enquanto dava banho no bebê, ela soltou a criança na banheira. “Eu me senti tão aperreada naquele momento porque eu não sabia o que fazer. Eu não tinha uma preparação para cuidar de criança, nem de mim mesma”, lembra.
Cláudia Souza é a mais velha de cinco filhos. Por causa da responsabilidade de trabalhar para conseguir comida para ela e para o seus irmãos, a cozinheira não pode estudar e só conseguiu concluir o segundo grau quando adulta, casada e com três filhos, no ano de 2002. “Ao mesmo tempo em que a vida me trouxe alguns benefícios, me fez uma pessoa guerreira, também me trouxe insatisfação, porque eu sei que eu poderia ser uma pessoa bem melhor do que eu sou. Se eu tivesse tido tempo e oportunidade para estudar hoje eu seria uma pessoa formada e seria uma pessoa bem mais satisfeita com a minha vida profissional”, desabafa.
Por fim, ela comparou a sua história com a parábola “lição da borboleta”. Um dia, uma pequena abertura apareceu em um casulo, um homem sentou e observou a borboleta por várias horas conforme ela se esforçava para fazer com que seu corpo passasse através daquele pequeno buraco. Então pareceu que ela parou de fazer qualquer progresso. Parecia que ela tinha ido o mais longe que podia, e não conseguia ir mais longe. Então o homem decidiu ajudar a borboleta, ele pegou uma tesoura e cortou o restante do casulo. A borboleta então saiu facilmente. Mas seu corpo estava murcho e era pequeno e tinha as asas amassadas. O homem continuou a observar a borboleta porque ele esperava que, a qualquer momento, as asas dela se abrissem e esticassem para serem capazes de suportar o corpo, que iria se afirmar a tempo.
Nada aconteceu. Na verdade, a borboleta passou o resto da sua vida rastejando com um corpo murcho e asas encolhidas. Ela nunca foi capaz de voar. O que o homem, em sua gentileza e vontade de ajudar, não compreendia era que o casulo apertado e o esforço necessário à borboleta para passar através da pequena abertura era o modo com que Deus fazia com que o fluido do corpo da borboleta fosse para as suas asas de modo que ela estaria pronta para voar uma vez que estivesse livre do casulo. “Hoje eu não tenho forças pra voar, mas eu vou voar”, encerrou o discurso, emocionada.